Rede tradutora de contrainformação

O Problema da Produção

Na minha recente peça “A anarquia é de extrema esquerda?” tentei reconhecer que o anarquismo, a vida sem governantes, existia muito antes dos homens brancos mortos inventarem o termo. A esquerda é uma facção do capital, e não pode subtrair-se a ela própria. Em vez de abolir o trabalho e a produção, xs esquerdistas desejam apenas reorganizá-los. Para elxs, produzir para “o povo” é bastante preferível a produzir para capitalistas. Xs esquerdistas acreditam que reestruturando ou renomeando certos aspectos do trabalho , ele pode ser tornado tolerável, ou até agradável! Frederick Engels desejava “abolir a competição e substitui-la pela associação”. Peter Kropotkin usava as ferrovias da sua altura como um exemplo dos benefícios da associação…

“ A rede ferroviária da Europa- uma confederação de tantas partituras de sociedades separadas- e o transporte directo de passageiros e mercadorias ao longo de tantas linhas que foram construídas em conjunto de forma independente e federada , mesmo sem ter um Conselho Europeu Central dos Caminhos de Ferro, é uma amostra contundente do que já foi feito por mero acordo.”

Aquelxs que ainda se agarram à produção recusam ver a verdadeira coercitividade do capital. Xs trabalhadorxs de hoje são literalmente forçadxs a trabalhar. No primeiro mundo, são confrontadxs com acusações de vadiagem e um estômago vazio por não trabalhar. No terceiro mundo, enfrentam o assassinato e a fome. Num mundo onde as pessoas não se confrontassem com estas coisas, escolheriam realmente trabalhar?

A grande maioria do trabalho… o trabalho que verdadeiramente forma a base da nossa civilização… é extremamente perigoso. Kropotkin, na mesma peça acima referida, menciona: “as pessoas que morreram aos milhares a escavar túneis,” mal tocando nas raízes das ferrovias ele segue glorificando. O ferro e o carvão que alimentam esses caminhos-de-ferro foram arrancados da terra em condições horríveis, à custa de muitas vidas. Mesmo hoje, as nossas indústrias operam à custa de desabamento de minas, derramamentos de petróleo, e antracose. As montanhas de sucata em países em desenvolvimento que nós “reciclamos” dão doenças de coração àquelxs que forageiam através delas. Não sabemos ainda se os terramotos nos nossos quintais são causados pelo fracking.

Sem a presença constante da ameaça da violência ou da fome, as pessoas escolheriam arriscar as vidas pela produção? A resposta para isto pode ser vista nas leis que o estado impõe para nos impedir de escapar do aperto do capital. As leis, em muitos sítios, contra a água recolhida e contentores de lixo tornam claro que a independência do sistema não surge sem consequências.

Para além de ser essencialmente perigosa, o que está realmente errado com a produção ? Karl Marx falou de trabalho alienado…

“…quanto mais o trabalhador se gasta a si mesmo, mais poderoso se torna o mundo alienígena dos objectos que ele cria sobre e contra si próprio, quanto mais pobre ele é – o seu mundo interior- menos lhe pertence como seu. É o mesmo na religião. Quanto mais o homem se coloca em Deus, menos se retém em si mesmo. O trabalhador coloca a sua vida no objecto, mas agora a vida não lhe pertence já mas ao objecto”.- Karl Marx

Quando produzimos coisas sobre o jugo do capital, nós estamos a vender o nosso trabalho. Não beneficiamos directamente das coisas que produzimos, apenas nos é pago um salário na esperança de que essas coisas sejam vendidas a dinheiro, para pagar os nossos salários. Aquelxs que estão na indústria de serviços, que não produzem directamente coisas, também estão alienadxs, fazendo o papel de servxs daqueles que vêm para gastar os seus salários. O trabalho não é o cultivo de alimentos no teu jardim. Não é ajudar um amigo a construir uma casa. O labor por coisas que te beneficiam directamente não é trabalho. Chama-se simplesmente vida.

Trabalho é tortura… literalmente.

“A palavra francesa travail (a espanhola trabajo e a portuguesa trabalho), assim como a sua equivalente em inglês, são derivadas da latina trepaliare – torturar, infligir sofrimento ou agonia. A palavra francesa peine, que significa castigo ou punição, também é usada para trabalho árduo, algo conseguido com grande esforço. O alemão Arbeit sugere que esforço, dificuldade e sofrimento, em língua eslava rabota (do qual deriva em inglês “robot”), uma palavra que significa corvee, trabalho forçado ou de servos. Nas línguas românicas, palavras derivadas da latina laborare vieram a significar lavrar ou arar a terra, apesar de, em italiano, lavoro também significar trabalho no geral. O significado em latim era de qualquer coisa conseguida com dificuldade e luta.

A palavra inglesa “work” tem uma raíz indo-europeia, por via da grega ergon, que significa feito ou acção sem conotações punitivas, e da latina urgere, pressionar, reprimir ou forçar. É aparentada com a gótica wrikan, perseguir, e a do inglês antigo wrecan. Portanto, na palavra “work”, a violência está latente, e aparece na forma de wreak*, quando falamos de causar estragos ou vingança.”- Jeremy Seabrook

A Bíblia diz-nos que devemos estar orgulhosxs do nosso trabalho, pois somos escravxs dele.

“E então eu vi que não há nada melhor do que um homem se regozijar no seu trabalho, pois esse é o seu destino.”-Eclesiastes 3:22

O trabalho, pela sua própria definição em alguns idiomas, é opressivo. Não é surpreendente que muitas culturas tradicionais nem sequer se tenham incomodado com tal conceito.

“Não havia nenhuma palavra à parte para o trabalho. O trabalho fazia parte das obrigações familiares… um meio de estar em contacto com a natureza como parte de uma relação recíproca de receber e retribuir”- Herbert A.Applebaum

O trabalho, e a sua prima industrializada a produção, não podem ser reformados. Até Marx, que tão vincadamente apontou as suas maquinações, não conseguiu rejeitá-las inteiramente…talvez por nunca ter trabalhado realmente um dia na sua vida… talvez porque tenha vivido numa época já tão intrincheirada em tecnologia e produção que não poderia imaginar um mundo sem elas. Duzentos anos mais tarde, xs esquerdistas de hoje agarram-se ainda com mais força à máquina, apontando para a internet ou para a impressão 3D como meios de libertação.

Mas para fabricar computadores, impressoras 3D ou mesmo baterias isso requer que as pessoas façam o tipo de trabalhos que só serão feitos através da coerção. A escravatura, de uma forma ou de outra, é responsável para o edificação e manutenção da civilização. Da relativamente avançada sociedade da China antiga às Pirâmides… dos servos da Europa Medieval ao tráfico de escravos no Atlântico. Nós estamos como estamos agora por causa de condições semelhantes à escravatura na China ou em África. Os próprios metais com que fazem os nossos carros e computadores são perigosamente escavados do solo num continente, e enviados, num processo que pode demorar semanas, para outro, para serem fabricados em coisas. Num mundo onde fossemos livres de nos sustentarmos a nós mesmxs se assim o desejássemos, iria este processo continuar? Temos sequer recursos suficientes no planeta para o continuar?

Com as taxas de produção actuais, a British Petroleum estima que temos cerca de 50 anos restantes com petróleo. Mesmo que possamos ter metais raros no solo para fazer smartphones e PCs para toda a gente no mundo, a distribuição desigual desses metais significa que teríamos que rasgar grandes troços de terra para o fazer. Se não tivéssemos de o fazer, destruiríamos e drenaríamos a terra, como estamos a fazer agora? Dada à nossa própria sorte, que incentivo há na destruição?

Mesmo que as fábricas fossem geridas democraticamente, ainda seriam fábricas. Os trabalhadores permaneceriam trabalhadores. Nenhum tipo ou quantidade de reformas ou reorganização pode mudar isto, e nem é claro se muitxs dxs esquerdistas o querem fazer. Vejam esse exemplo da França pré revolucionária em Maio de 1968…

A ideia de que os “meios de produção pertencem axs trabalhadorxs” foi traduzida de forma a significar que xs trabalhadorxs possuem a fábrica específica em que trabalham. Isto é de uma vulgarização extrema. Tal interpretação significaria que a actividade particular a que a escravidão do salário condenou alguém na sociedade capitalista é a actividade a que estarão condenadxs quando a sociedade for transformada. E se alguém que trabalha na fábrica de automóveis quer pintar, cultivar, voar ou fazer investigação em vez da produção da linha de montagem de carros? Uma revolução significaria que xs trabalhadorxs , nesse momento, andariam por todo o lado na sociedade, e é duvidoso que muitos delxs regressassem à fábrica específica a que o capitalismo xs condenou a trabalhar.” -Fredy Perlman

Quem quer que deseje mudar a sociedade de forma significativa tem que olhar a produção da forma que é realmente… seres humanos coagidos por maquinaria e distanciadxs de si mesmxs… pilhando o ambiente e sendo distanciados da natureza.

“Temos de parar de trabalhar com vista a deixarmos de sofrer”– Bob Black

fonte: destroy.svbtle.com

Nota dxs tradutorxs: * em inglês wreaking (causando estragos)